terça-feira, abril 02, 2013

Coleção Yawanawá, de M. Rosenbaum


As luminárias do projeto ‘A Gente Transforma’


Pendente Runuãrunuahu: 11 “jiboias pequenas” de miçangas se enrolam numa trave de madeira pupunha esculpida à mão

“Design útil é aquele que transcende o objeto”. A fala é do designer Marcelo Rosenbaum, que nos últimos anos tem pautado seu trabalho nesta filosofia. “Útil”, no caso, significa que, mais do que a função prática, as peças sob esse conceito devem atender a um propósito maior. É exatamente o caso das luminárias criadas na terceira edição do projeto A Gente Transforma, realizada numa aldeia indígena da etnia Yawanawá, no Acre.

Em janeiro deste ano, uma equipe multidisciplinar de 30 pessoas passou quase um mês imersa nas aldeias Nova Esperança e Amparo, na floresta amazônica. A ideia é, por meio da troca de saberes, promover o desenvolvimento local e permitir a permanência da cultura Yawanawá. O design, aqui, é usado como uma ferramenta de transformação: ele é um meio, e não o fim. O que não significa que as peças não tenham valor estético – muito pelo contrário.


Detalhe do trabalho de miçangas nas “jiboias pequenas” do pendente Runuãrunuahu


Com 2,20 m de comprimento, o pendente Runuãkenê representa a jiboia, um dos animais mais sagrados para os yawanawá – a malha gráfica de miçangas rebate a luz emanada pela mangueira de LEDs, embutida na canopla metálica superior 


Detalhe da malha gráfica de miçangas do pendente Runuãkenê

Inspiradas nos mitos e nas cosmologias desta tribo, as luminárias se utilizam de técnicas artesanais dominadas pelos Yawanawá e fazem uso dos kenês, grafismos geométricos que representam animais e elementos da natureza, significando “as transformações, as conexões com o divino”, segundo Rosenbaum. “Nós não levamos nada, mas estimulamos o que eles já têm. O que fazemos é validar e valorizar o que está lá”.

Mais do que o aspecto estético das peças, a cultura indígena também inspirou a dinâmica da criação, como explica Rosenbaum: “A ancestralidade entende que uma ideia não é de um indivíduo, mas de um coletivo. A pessoa está apta a receber aquela informação, mas para o bem comum”. Portanto, todos os produtos da coleção são fruto da co-criação entre três estúdios de design, sempre interagindo com a comunidade e seus saberes. “E cada produto carrega esse saber”, festeja Rosenbaum. Além dele, participam os estúdios Fetiche, de Carolina Armellini e Paulo Biacchi, e Nada Se Leva, de André Bastos e Guilherme Leite Ribeiro.

As luminárias criadas durante o processo serão lançadas pela La Lampe no segundo semestre, mas já poderão ser conferidas por quem visitar Milão durante o Salão do Móvel, entre os dias 9 e 14 deste mês, pois serão mostradas na exposição Yawanawá – A força da floresta, dentro da mostra Brazil S/A.

Embora o resultado desta criação conjunta seja muito bom, Rosenbaum faz questão de frisar que “o potencial é muito maior” e que há uma série de ações em andamento e outras previstas – boa parte delas envolve a divulgação da cultura Yawanawá, como um filme, um ensaio fotográfico e até um cardápio gastronômico. “O A Gente Transforma parte da premissa de que a comunicação é tão importante quanto o fazer, pois possibilita um despertar”, defende. E conclui, com humildade e poesia: “A função das luminárias é essa, de uma arara. [Na mitologia Yawanawá, as araras levavam, no seu canto, mensagens de esperança]. É por aí que o público vai se comunicar com essa história tão rica”.
A luminária de piso Puriti é formada por três flechas de caça, articuladas por uma fatia de cocão (um fruto da região). Na produção industrial, alguns materiais serão adaptados, mas as lanças das pontas e a peça de miçangas (que contém o interruptor) serão executadas pelos yawanawá 


Pendente Shinuã solitário 


De miçanga tramada, os pendentes Shinuã representam a floresta e estarão disponíveis em tonalidades de verde, marrom e azul (a mata, a terra e o céu), em versão solitária ou com várias peças combinadas

Confira, a seguir, os principais pontos abordados por Marcelo Rosenbaum na entrevista:
Índio yawanawá com protótipo da luminária Puriti

Design útil e valorização cultural

Nós começamos a falar de design útil há uns cinco anos, em projetos junto com a indústria. A gente simplificava a história toda, falava que o design pode ser útil. A ideia era usá-lo como ferramenta de comunicação. O armário Caruaru, por exemplo, tem a ilustração do J. Borges, que as pessoas fora da região não sabiam quem era – e quem sabia achava que ele estava morto! É valorização cultural mesmo. Antes, o design útil era um braço do escritório. Hoje a gente enxerga o design útil como um movimento e uma forma de imaginar o design como um catalisador de mudanças para o redesenho de um novo mundo. Então quando a gente começa a pensar nisso, percebe que o design não está mais só no objeto, no fazer as coisas materiais, uma mesa, uma cadeira – ele transcendeu isso. Essa vontade de transcender o objeto começou a se materializar com o AGT.
Da esq. para a dir., os designers André Bastos, Carolina Armellini, Paulo Biacchi e Marcelo Rosenbaum com o cacique Biraci Brasil durante o processo

A história por trás do projeto

Essa é a terceira edição AGT, e aconteceu numa comunidade indígena Yawanawá. Fui lá pela primeira vez em outubro, num festival que acontece todos os anos e é aberto ao público – várias etnias de muitos lugares do Brasil visitam esse festival. Nesse tempo, fiz um processo intenso com todos os caciques que estavam lá, e os pajés, durante uma semana. Fiquei completamente enlouquecido com o potencial, recebi uma demanda do cacique Biraci Brasil, uma pessoa que tem uma história fantástica... E voltei pronto para fazer esse projeto em janeiro. Fomos numa equipe de 30 pessoas, com chef de cozinha, arquiteto, cinegrafista, designer, publicitário, fotógrafo, além dos estúdios Fetiche Design e Nada Se Leva, com quem a gente trabalhou em co-criação. Porque toda a história do design útil é a cocriação também. É como os índios pensam também. A ancestralidade inspira muito o AGT: ela entende que uma ideia não é de um indivíduo, ela é de um coletivo. A pessoa está apta a receber aquela informação, mas nunca é para ela só, sempre é para o bem comum.
Índios yawanawá com protótipo da luminária Runuãkenê

Os Yawanawás

Até a década de 1980, essa etnia estava praticamente em extinção. Eles estão em contato com o homem branco há 150 anos, desde a época dos seringalistas, e foram explorados, massacrados. Muitos desses índios já moravam em favelas, na cidade grande. E os que ficaram, não sabiam fazer cocar, não faziam essas pulseiras, não pintavam mais os corpos, não cantavam mais as músicas, não falavam mais sua língua... Aí, na década de 1980, o cacique Biraci voltou e resgatou muita coisa: mandou os missionários embora, ganhou 10 mulheres da aldeia, teve 35 filhos... É uma outra relação de mulher, de amor, de comunidade, de coletivo. Eles vivem numa estrutura complexa... E nesse contato com ele, recebemos uma demanda e começamos a construir o projeto. E o AGT parte da premissa de que a comunicação é tão importante quanto o fazer – o despertar através da comunicação. O que a gente foi fazer lá é um projeto de várias ações, mas que começa no objeto, com o design e o artesanato.
Índios yawanawás com protótipo da luminária Shuhu

Diversidade

A gente fez uma coleção de luminárias baseada nos mitos, nas mitologias deles. É bacana saber que as diferenças das etnias dos índios brasileiros pode ser tão ou mais distinta do que a cultura do russo pro japonês, ou do chinês para o alemão. Entre os tapuias do sertão e os pataxós do litoral, por exemplo, os costumes e as cosmologias são completamente diferentes. É preciso entender esse contexto. Esse sistêmico faz parte. (...) Acho que um ponto que toca, que é muito sério, é uma auto-estima de pertencimento, porque o que a gente leva pra eles é um olhar do que eles já tem, de muitas vezes negação, ou de não-valorização. E aí quando eles fazem e esse produto é aceito, esse produto tem exatamente a ver com eles. O nosso movimento é exatamente esse: pensar em quem vai produzir e quem vai consumir e de que forma – esse é o movimento do design útil.
Índios yawanawá com protótipo das luminárias Nãwaruku e Huñati 


Índios yawanawá com protótipo das luminárias Nãwaruku e Huñati

Eles hoje não moram em ocas, e sim em casas de madeira muito mal construídas, sem luz natural, sem ventilação, muito quentes... Um retrocesso, pois a oca é absolutamente confortável, vinha tudo da natureza. Então nós saímos com jovens líderes da comunidade e fomos fazer uma experimentação na floresta. Pegando cipó, palha, estimulando eles a uma memória que ninguém dessa aldeia lembra ou morou numa oca, mas está no sangue deles, isso é uma questão de memória. Nessa foto, eles estão num momento religioso deles, num ato... embaixo de uma das peças está um pajé que é o único que nunca tinha saído da aldeia e todos esses rapazes estão em reverência, porque o pajé está falando o que significa para eles se conectarem de volta com essas técnicas e com essas ocas. E então a gente começou a clicar as fotos – esse não era o momento de fazer a foto. O design útil tem exatamente essa função – é uma peça, que pode ser um produto, mas a função dele não é estética, é um despertar. E o que esse homem estava falando aí nesse momento já vale pelo projeto todo. Não é só questão de levar geração de renda – claro, a continuidade do projeto vai chegar nesse ponto, de um resgate das moradias, por exemplo, vamos chegar lá. Mas o resultado disso é muito mais fundo do que o levar dinheiro para a comunidade.


Artesãs trabalham na confecção das “jiboias pequenas” do pendente Runuãrunuahu

Experimentar e investigar

Com uma relação absolutamente honesta e de amor e com demandas, a gente começou a fazer esse trabalho lá. O primeiro pensamento foi o de criar as luminárias com as miçangas, um trabalho que eles já fazem. Esses desenhos das mirações, das inspirações que eles têm através dos atos religiosos deles, representam animais que significam as transformações, as conexões com o divino. Fiquei encantado com isso e achei que tinha um potencial gigante de trabalhar com as miçangas. Mas a gente foi além. Esse é um trabalho de investigação. Esses produtos todos vão ser comercializados nas lojas da La Lampe – é uma forma que a gente achou de colocá-los no mercado imediatamente. Mas o exercício lá era experimental. A gente exercitou tipologias com os materiais que eles têm – as miçangas, a palha, a madeira de pupunha... A gente tem o compromisso de colocar no mercado, mas lá a gente estava testando, porque aquele era o momento.

Fonte: Casa Vogue

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